O artigo de Marcelo Ribeiro foi publicado na edição nº3 da Revista Debates, produzida bimestralmente pela Associação Brasileira de Psiquiatria.Vinte anos após sua chegada, o consumo de crack continua a aumentar em São Paulo (Oliveira & Nappo, 2008). A primeira apreensão desse derivado da cocaína na cidade de São Paulo aconteceu em 1990, registrada nos arquivos da Divisão de Investigações sobre Entorpecentes (DISE) (Uchôa, 1996). Sete anos depois, o volume de apreensões de crack aumentou 166 vezes, e de pasta básica, 5,2 vezes, ambas para a região sudeste (Procópio, 1999). A cidade de São Paulo foi a mais atingida. Algumas evidências apontam para o surgimento da substância em bairros da Zona Leste da cidade (São Mateus, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista), para em seguida alcançar a região da Estação da Luz (conhecida como “Cracolândia”), no centro (Uchôa, 1996). A partir daí, espalhou-se para vários pontos da cidade e do Estado (Duailibi et al, 2008).Levantamentos epidemiológicos não detectavam a presença do crack antes de 1989 – tomando os meninos em situação de rua como exemplo, não havia relato de consumo até o referido ano. Em 1993, no entanto, o uso em vida atingiu 36% e, em 1997, 46% (Noto et al, 1998). Os serviços ambulatoriais especializados começaram a sentir o impacto do crescimento do consumo a partir do início dos anos 90, quando, em alguns, a proporção de usuários de crack pulou de 17% (1990) para 64% (1994), entre os dependentes de cocaína que buscavam tratamento (Dunn et al, 1996), atingindo níveis superiores a 70%.Inicialmente, o consumo da substância atingiu uma faixa de usuários atraídos pelo preço reduzido em relação à cocaína, outros em busca de efeitos mais intensos para a mesma e, por fim, uma parte dos adeptos do uso injetável de cocaína abandonou essa via de administração com receio da contaminação pelo HIV, escolhendo o crack como alternativa (Dunn & Laranjeira, 1999). A primeira investigação sobre o consumo de crack no Brasil foi um estudo etnográfico realizado no município de São Paulo, com 25 usuários vivendo na comunidade (Nappo et al, 1994). Os autores relataram que o aparecimento da substância e a popularização do consumo tiveram início a partir de 1989. Perfil dos pesquisados: homens, menores de 30 anos, desempregados, com baixa escolaridade e poder aquisitivo, provenientes de famílias desestruturadas. Estudos com usuários de diversos serviços da capital paulista retrataram um perfil semelhante (Dunn & Laranjeira, 1999; Ferri, 1999). A mortalidade atingia uma porção considerável desses usuários, sendo os homicídios a causa mais frequente (Ribeiro et al, 2006).No início dos anos 2000, instituições ligadas à infância e a imprensa anunciaram uma provável redução do consumo em São Paulo, bem como da procura por atendimento na rede pública municipal (Dimenstein, 2000). Parecia que o problema do crack se reduziria, como se notava em países que investem em pesquisa e políticas públicas, como os Estados Unidos e a Inglaterra. O oposto aconteceu. Os dois levantamentos domiciliares (2001 e 2005) realizados pelo Centro de Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) mostraram que o consumo de crack quase dobrou (CEBRID, 2006). Os motivos dos usuários para o consumo também se alteraram: em meados dos anos noventa, “a busca por sensação de prazer” era a justificativa da maioria. No final da mesma década, porém, o consumo era estimulado pela compulsão, dependência ou como uma forma de lidar com problemas familiares e frustrações – o pensamento do usuário se reduzia ao consumo do crack, em detrimento do sono, comida, afeto e senso de responsabilidade (Nappo et al, 2001).Além disso, atingia usuários de todas as classes sociais, que consideravam os serviços de atendimento públicos insuficientes e inadequados para suas necessidades (Nappo et al, 2001) – dado coletado há mais de dez anos. Políticas públicas específicas para a substância e seus usuários nunca existiram, apesar de a demanda por tratamento ser a que mais aumentou entre as drogas ilícitas nos últimos anos. Desse modo, enquanto os agentes de saúde esperavam pelo desaparecimento espontâneo e milagroso desse grupo, novas facetas desse modo de consumo foram se mostrando: a associação entre o uso de crack e a infecção pelo HIV (Malta et al, 2008) e a violência contra e entre os usuários são apenas duas delas (Carvalho & Seibel, 2009). Os usuários de crack têm diferenças marcantes em relação aos de cocaína inalada, sendo mais comum entre os primeiros o consumo de outras drogas, bem como o envolvimento em contravenções (Guindalini et al, 2006). Quanto ao tempo de uso, ao contrário do que se supunha anteriormente, há um grupo de usuários que utiliza a o crack há mais dez anos de forma ininterrupta, apontando para uma provável adaptação do usuário à cultura do uso (Dias et al, 2008; Abeid-Ribeiro, 2010).Recentemente, um estudo qualitativo com usuários de crack (n=62) da cidade de São Paulo procurou atualizar o perfil desses usuários (Oliveira & Nappo, 2008). O perfil, masculino, jovem, com escolaridade e poder aquisitivo baixos, foi semelhante ao encontrado nos anos anteriores. Quase todos experimentaram uma grande quantidade de outras substâncias ao longo da vida – 14 foram citadas –, mas o crack permaneceu como a droga de escolha, ficando as demais como maneiras de lidar com os efeitos indesejados do consumo. Há um grande envolvimento desses usuários em atividades ilícitas, fomentado a princípio pela necessidade premente e constante da substância. O estudo também identificou um grupo minoritário de usuários que utilizavam o crack controladamente, ou seja, um consumo não-diário, conciliado as atividade cotidianas – família, emprego,... – e desprovido de atividades ilícitas, como furtos, roubos ou tráfico. Os usuários com essas características foram mais expostos a intervenções terapêuticas e possuíam anteriormente padrões compulsivos de uso e migraram para esse modo ao longo dos anos, motivados pelo receio das consequências negativas presentes e potenciais.Outro estudo acompanha há doze anos usuários de crack da cidade de São Paulo (n=131), que estiveram internados numa enfermaria de desintoxicação durante os anos iniciais da chegada da substância à cidade (1992 – 1994) (Ribeiro et al, 2007; Dias et al, 2008). Ao longo desse período, alguns achados relevantes foram encontrados e comparados com estudos semelhantes. Nos cinco primeiros anos, as taxas de mau prognóstico, tais como mortalidade (18%), prisão (12%) e desaparecimento (4%), atingiram mais de um terço dos usuários. Além disso, 10% estavam infectados pelo HIV, metade já havia cometido algum delito e um quinto fora detido ou condenado à prisão em vida (Ribeiro et al, 2007). Essa tendência a desfechos de alta gravidade foi maior nos primeiros anos – 92% das mortes aconteceram nos cinco primeiros anos. Por outro lado, o estudo observou uma tendência à abstinência entre os usuários, constituindo a condição mais comum entre os sobreviventes ao final de doze anos (Dias et al, 2008). Nesse mesmo período, a imensa maioria, incluindo os usuários, estava empregada de alguma forma, sendo os abstinentes aqueles que estavam melhor e formalmente empregados. A busca por apoio ao longo dessa década foi precária: poucos se trataram de modo constante, sendo a procura por internações para desintoxicação nas fases agudas de consumo o mais observado – ou seja, quem melhorou ou sobreviveu, salvo nos momentos de grande desorganização, caminhou por si próprio e com os apoios informais que conseguiu.O consumo de crack em São Paulo – e atualmente em boa parte dos Estados brasileiros – é uma realidade grave e perene que necessita de soluções específicas e com durabilidade semelhante. O perfil de seus consumidores, jovem, desempregado, com baixa escolaridade, baixo poder aquisitivo, proveniente de famílias desestruturadas, com antecedentes de uso de múltiplas drogas e comportamento sexual de risco (Duailibi et al, 2008; Oliveira & Nappo; 2008), dificulta adesão dos mesmos ao tratamento, com necessidade de abordagens mais intensivas e diversificadas. Outras dificuldades encontradas pelo usuário de cocaína e crack para a busca e adesão ao tratamento é o não reconhecimento do consumo como um problema, passando pelo status ilegal e a criminalidade relacionada a estas drogas, pela estigmatização e preconceitos, pela falta de acesso ou não aceitação dos tipos de serviços existentes (Duailibi et al, 2008). Dependência química é uma doença cerebral crônica e recidivante, na qual o uso continuado de substâncias psicoativas provoca mudanças na estrutura e no funcionamento desse órgão (Kalivas & Volkow, 2005). Por outro lado, as múltiplas necessidades psicossociais dos usuários de crack comprometem suas vidas com igual intensidade. Desse modo, há necessidade de modelos de atenção capazes de reduzir o custo social das drogas e que considerem sua natureza biológica e psicossocial. Todos os modos de atendimento que privilegiaram um em detrimento do outro mostraram-se ineficazes (Miller & Hester, 2003).É preciso diversificar as opções de atendimento, por meio da criação de equipamentos intermediários ao ambulatório e à internação, tais como moradias- assistidas e hospitais-dia (e noite). Além disso, é preciso integrar melhor a rede existente, incluindo um melhor entrosamento entre a rede pública e os grupos de auto-ajuda e as comunidades terapêuticas que souberam se modernizar e se adaptar às normas mínimas da Anvisa. Ações aparentemente simples, baratas e comprovadamente eficazes que poderão alterar positivamente o panorama de saúde pública relacionado a essa substância nos próximos anos.
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