quinta-feira, 15 de julho de 2010

"O começo de tudo" Série Meninos do Crack!

“Ninguém pode imaginar como o crack é magnífico e devastador ao mesmo tempo.’’

Minha vida era normal. Tudo ia bem. Estudava, trabalhava, ganhava meus extras e tinha amigos. Era maravilhoso, mas só enxergo isso agora.Depois que nos viciamos em crack, quando bate a depressão,lembramos da vida que tínhamos antes que escureceu e nos perdemos com a droga. Tu vai me perguntar se eu lembro a vida que perdi, do tempo que era feliz, porque não paro de me drogar. É aí que bate a depressão, quando nos recordamos das boas lembranças. Se fuma para esquecer. Pega o cachimbo, coloca a pedra e fuma para se esquecer de tudo. Já foi, já era. Só restou a vontade de fumar.Eu tinha família, casa, sonhos, filho e uma vida inteira pela frente,mas eu caí. Não pense você que eu era assim esquecida, perdida. O crack faz isso, te tira a concentração. Eu vou te contar como tudo começou. Isso eu lembro bem, porque fico remoendo todos os dias. E pensar que podia ter sido diferente...Eu já fazia programa, mas não era para porcaria. Tudo começou assim, lembro como se fosse hoje: estava em casa, deitada na cama,tranqüila, quando meu celular tocou. Era a Júlia, minha amiga e colega de trabalho. Perguntou se eu queria fazer um programa por cem reais.Topei na hora, afinal, a maioria dos homens pagava cinqüenta. Nem perguntei maiores detalhes para a Julinha. Me arrumei como de costume: saia curta, meia calça, blusa e botas com salto alto. Os homens preferem assim. Nessa profissão, temos que causar impacto na chegada.Eles têm que te olhar e gostar, para se sentirem atraídos. Assim, tudo rola mais rápido. No nosso caso, tempo é dinheiro. E lá fui eu em direção ao motel. Ele já me aguardava lá.Desci do táxi, bati na porta e ele abriu. Mal sabia eu que aquele era o começo de tudo. As portas do inferno se abriram, para mim,naquele dia chuvoso. A partir daquele dia, eu iria percorrer o caminho mais tortuoso que qualquer ser humano pode seguir. Ele estava nu.Esperava inquieto ao lado da banheira, enquanto a enchia d’água. Eu fiquei ali e me apresentei. Ele nem me olhava, parecia que eu não estava ali. Comecei a estranhar aquele homem, jovem, de aproximadamente trinta anos, que não me tocava, não fazia perguntas. Ele apenas me olhava, diferente do que eu estava acostumada. Foi, então, que tentei tocá-lo. Ele foi indiferente e pediu para que eu parasse, pois não tinha me chamado ali para transar. Ergueu uma calça, que estava em cima de um bidê, e pegou algo, que eu nunca tinha visto, na mão: eram pedras de crack. Me pediu se eu usava e eu respondi que nem conhecia. Então,foi quando ele me apresentou o que me parecia inofensivo. Disse que me pagaria para que eu fumasse com ele, que não faríamos nada apenas isso. Eu relutei, mas foi em vão. Ele não tinha ereção, por mais que eu tentasse. Eu também não queria voltar para casa sem dinheiro. Foi,então, que resolvi experimentar, mas o que era para ser apenas uma experiência, não foi. Nem sabia como fazer. Ele tirou uma espécie de cachimbo do bolso, colocou cinza de cigarro, a pedra e queimou.Enquanto eu tragava aquilo, me sentia em uma euforia louca, como se eu pisasse nas nuvens. Ele fumava uma atrás da outra. Eu ficava apavorada. Fumamos todas as pedras que ele tinha. Eu não lembro bem quantas eu fumei, mas acho que não foram muitas, porque ele fumava bastante. Fui para casa com uma sensação estranha. Será que eu aindaestava drogada? Não sabia ao certo.No outro dia, me interrogava o porquê daquele homem ter me pago para fumar pedra com ele, pois, pela lógica, pensei que essas coisas não se dividiam. Mais tarde, eu mesma respondi essa pergunta.Passou os dias e aquele homem voltou a me ligar. Eu não resisti.Pensei que não tivesse nada demais e queria ganhar cem reais sem precisar transar. Assim, tudo começou. Uma seqüência de idas e vindas,ao motel, com aquele cliente estranho. Já não ia até lá pelo dinheiro.Passei algum tempo enganando a mim mesma, dizendo que ia lá pela grana, mas, no fundo, eu era mais uma vítima das pedras. Até hoje, me pergunto como era o nome dele. Ele nunca me disse. Toda vez que nos encontrávamos, ele estava louco, fora do ar. Talvez nem ele lembrasse como era seu nome.Tudo começou a mudar e eu comecei a gastar o dinheiro do meu “programa” com pedras. Depois, ele que me pagava com pedras. Não via mais a cor do dinheiro. Justo eu, que me achava esperta, caí na armadilha das drogas. O pior daquela que não tem mais saída.Começou, assim, num programa, que era para ser como qualquer outro. A minha ganância, por ganhar mais, me tirou tudo o que eu tinha.

Valentine tem vinte e seis anos e é secretária. Possui segundo grau incompleto. Fuma crack há seis anos e passou por três internações de reabilitação.
 
Material extraído do Livro Meninos do Crack da Escritora Ana Paula Nonnenmacher

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