quarta-feira, 23 de junho de 2010

O príncipe que perdeu a realeza. Série Meninos do Crack!

Eu tinha quatorze anos quando comecei a usar crack. Uma trajetória que ainda não sei onde vai parar e como vai terminar. Mais um mistério a ser desvendado pela sociedade.A vida de quem usa pedra é uma mistura de emoção, adrenalina,medos e, é claro, riscos. A cada dia, um novo desafio, para ter grana para fumar. Não se tem compromissos com mais nada. Se passa noites e dias correndo atrás de grana, para satisfazer o vício.Tenho sorte, cometi vários delitos e nunca fui em cana. Um dia,para conseguir dinheiro, vou ao mercado e roubo barras de chocolate,para trocar por pedras. No outro dia, assalto pedestres. Assim vai, mas não é porque sou um drogado que não tenho princípios. Jamais vou tirar algo de mulheres e de velhos, os considero indefesos. Eu paro, penso e prometo, para mim mesmo, que vai ser a ultima vez, mas quando percebo, a vontade de fumar vem, e aí, tenho que ir atrás, dar uma banda e levantar a grana.Quando lembro a minha infância, me vejo um príncipe. Era isso que eu era. Tinha tudo que uma criança pode querer: brinquedos,guloseimas, roupas e boas escolas. Agora estou assim: um homem que rouba carros, motos e assalta ônibus, que é barbada para fumar pedras.Não dá para acreditar que aquela criança calma, loura com os olhos azuis, que morava em uma bela casa com a tia e tinha uma vida maravilhosa, se transformou em um drogado. Poxa, nem eu acredito que minha vida se transformou de tal maneira. Onde ficaram meussonhos, meus objetivos de vida? O quê o crack fez comigo? Cadê as mulheres? Onde estão às festas? Tudo sumiu. Foi para o espaço a minha vida, os meus princípios e valores.Voltando ao passado, lembro a infância onde preferi morar com minha tia, porque minha mãe morava em Montevidéu e eu não me acostumei com a cultura de lá. Queria ficar perto dos meus amigos,gostava do Rio Grande do Sul. Então, minha tia me acolheu. Mulher batalhadora, carinhosa, prestativa, que não me gerou, mas tinha um imenso amor por mim. Minha tia me educou, me cuidou , me resenteou. Como minha tia trabalhava muito, isso fez com que ela não percebesse, de imediato, que eu estava caminhando no mundo das drogas. Na adolescência, tinha muita liberdade. Sempre gostei de tudo que tem emoção e adrenalina, talvez fosse essa mesma emoção que me levou para o crack. Comecei a andar de skate e, como todo skatista,fumava maconha. Sei lá, me sentia melhor andando de skate chapado.Sempre tive dinheiro e liberdade, assim começou. Parecia mentira, mas eu e meus amigos roubávamos motocicletas por pura diversão. Não precisávamos. Tínhamos tudo, mas, para mim, isso não parecia um problema. Usei todos os tipos de drogas, até chegar ao crack.minha vida mudou muito: não tenho mais um lar, minha tia faleceu, minha mãe foi assassinada pelo namorado e eu fiquei aos trancos e barrancos. Fui adotado, mais uma vez. Dessa vez, foi o crack quem me adotou, mas o crack não é pai. Ele te adota, te acolhe, te escraviza e te aprisiona. Não tenho mais como escapar. A sociedade não entende todo esse processo. Tem muita gente,por aí, que quando percebe que você é drogado, chega a atravessar a rua de medo, pensando que vamos fazer alguma maldade. Poxa, euexisto! Faço parte dessa sociedade, querendo as pessoas ou não. Eu sou um ser humano, mesmo sendo um viciado em pedras. Talvez, até tenha culpa de estar assim, nessa situação, mas você pensa que é fácil sair disso? Desse círculo vicioso? Todos querem e ainda se busca soluções.Também estou procurando.Será que tem uma fórmula mágica? Eu quero essa fórmula, para poder deixar essas pedrinhas brancas, que estalam e me deixam doidão por minutos. Acredito que eu fumo umas três gramas de crack por dia.Não tenho muito controle. Só sei que, se eu pegar cinco, dez ou vinte reais, eu fumo tudo. Depois de fumar a primeira, se quer mais e mais.Sei lá, pode parecer estranho, mas vou levando, não vivendo, porque isso não é vida. Não paro para pensar em muita coisa. Vou levando assim. Até quando?Não sei. Ainda se espera um milagre. Eu, meus amigos que,também, estão nessa e a sociedade. Aqui estou eu, mais uma vitima do crack, com sonhos pendentes.Nessa loucura, tudo foi acontecendo de uma forma que eu não me dei conta, e cá estou.

Rui tem trinta anos e é vendedor. Possui o primeiro grau completo.Fuma crack há dezesseis anos e passou por duas internações de reabilitação.

Material extraído do Livro Meninos do Crack da Escritora Ana Paula Nonnenmacher

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