segunda-feira, 28 de junho de 2010

"Menino castigado" Série Meninos do Crack!

Tinha dezesseis anos quando tive meu primeiro contato com as pedras. O que posso dizer? Eu, um jovem curioso, filho de pais separados,o menor de uma família de classe média alta. Tinha uma vida feliz,embora meus pais fossem bem enérgicos comigo. Sempre me exigiam que estudasse bastante. Era assim, algumas discussões, como em toda a família normal.Meu pai sempre foi muito rígido comigo. Jamais esquecerei quando ele descobriu que estava usando drogas. Me deu uma surra muito grande e falou que pediu para minha mãe fazer um aborto quando estava grávida de mim. Me batia e usava essas palavras: “você não deveria ter nascido”.O que me marcou não foi a surra, mas as frases ditas, que me causaram uma grande dor.Sai de casa e fui até um traficante da cidade buscar pó. Ele disse que não tinha e me ofereceu pedra. Nunca tinha usado. Lembro de ter perguntado a ele qual era a diferença da cocaína e da pedra e ele ter me dito que nenhuma, apenas, que o pó se cheirava e a pedra se fumava. Eu acreditei.Parti para a nova experiência. Um garoto com dinheiro, conforto,revoltado e destemido da vida. Dei o primeiro pega e senti que era diferente do pó, agia mais rápido. Então, quis mais. Gastei todo o dinheiro que eu tinha naquela noite. Sabe, eu penso que me viciei desde o primeiro pega. Pois, a partir dali, tudo ficou diferente. Quando cheirava não era assim, eu usava de vez em quando. Até sentia falta, mas conseguia ficar sem. Com o crack, na segunda vez que usei, já não me controlei mais. Gastei o dinheiro do bolso, vendi o som, os estepes e
empenhei os documentos do carro do meu pai. A partir daquele dia, as minhas festas eram regadas a pedras, sempre nos fins de semana.Depois, a necessidade foi aumentando e passei a usar mais vezes durante a semana, até que a droga me possuiu.Sempre se tem um motivo para fumar. No inicio, você pensa assim. Não acha que está viciado. Um dia se usa para comemorar, outro,porque se desentendeu com os pais e quer esquecer, e por ai vai. A pedra toma conta do ser humano. Simplesmente, vai te levando, sem que você mesmo perceba. Não tem o ditado: “cabeça vazia é a oficina do diabo”? Pois é, nos dias que não se tem muito que fazer, se fuma isso no inicio. Depois, já era. Sem que se perceba, vai se perdendo os valores.
Vi meu irmão se formar, minha irmã comprando uma pousada e eu, bom, roubando e assaltando. Aí vem a culpa, a vergonha. Você quer pedir ajuda, mas não admite. Tem vergonha, se sente inferior e fuma cada vez mais. Depois da pedra, a rotina de um viciado, quando se tem uma família como a minha, não é de passar fome. Por mais que você seja um pedreiro, eles não vão negar alimentos, mas para obter o dinheiro, a rotina é roubar, assaltar, dar golpes. Se pensa na família, se lembra dos momentos, mas não se consegue sair do mundo das pedras.Eu fumo até para esquecer eles, para não ficar com culpa.Essa droga te ameniza os sentimentos. Não se sente nada, não se pensa. É um anestésico, que vai tomando conta de você, mas que não te preenche os vazios. Na verdade, acho que não quero preencher meus vazios, suprir necessidades. Tenho tudo: casa, conforto, mas, mesmo assim, prefiro andar por ai, rolando. Passam os dias e eu continuo na rotina de andar, para cima e para baixo, para conseguir a droga. Não tenho muita dificuldade de conseguir a grana, sempre levanto.Já fui preso duas vezes. Se vive sempre em risco, a vida por um fio, a cada dia. Uma loucura. Por que não consigo sair? Basta dar um telefonema, me internar, mas não consigo fazer isso, algo me prende.As pedras me prendem de uma maneira que não consigo me mover para me ajudar, para largar essa vida da qual já estou cansado. Estou farto de viver assim, mas não consigo me libertar.

Piá tem vinte e cinco anos. Possui o segundo grau completo. Fuma crack há nove anos e passou por três internações de reabilitação.
Material extraído do Livro Meninos do Crack da Escritora Ana Paula Nonnenmacher

Um comentário:

  1. Olá a todos @s.
    Parabéns por reportagem tão exclarecedora sobre o crack, estes dados me servirão de de base para a defesa aos usuários e combate as drogas, já que sou parte de um povo que luta contra esta maldita droga, tenho um trabalho junto as casas de recuperação de usuários e que não é facil lidar tanto com o viciado como com as familias, esta ultima que sofre espiritualmente, psicologicamente e financeiramente.

    O que nos sustenta nesta empreitada é ter a certeza que conseguimos bons resultados, diferente de outros tipos de tratamento, de toda forma meus respeitos aos pesquisadores e esforço para mostrar a sociedade que precisam se envolver mais com este assunto.

    Fiquem na graça e paz de Jesus,
    Hugo Paiva
    REDE HUMANITÁRIA DE ALIMENTOS NA ZONA LESTE
    Visite meu blog, lá tem varios endereços de casas de recuperação:http://blogdohugopaiva.blogspot.com/

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