“As pedras tiram qualquer sentimento que possa existir no coração do homem. Não se ama nada, nem ninguém, só a droga.”Foi só por curiosidade. O louco era de Porto e estava passando uns dias na cidade. Ofereceu: “vamos queimar uma”. Sei lá cara, não pensei duas vezes. Jamais pensei que mudaria minha vida por causa das drogas.Imaginava que só ia curtir. Curtir nada. Passei a ficar cada vez menos em casa e fazer corre para me drogar. Fui para as ruas ganhar a vida.Bah... Já passei alguma por causa dessa maldita droga. Injustiças é o que mais acontece. Somos julgados por fatos que, muitas vezes,sconhecemos. Não importa quem assaltou, quem aplicou um 71, quem chacou. Se a pedreira estava perto, foi ela. Sempre cai na do usuário.Naquela noite, eu e meu namorado estávamos voltando do canal.Íamos fumar umas, curtir, o de sempre... Encostei-me no muro, peguei o cachimbo e fui dar um pega. Passou por nós um carro com películas escuras, devagar. O carro fez a volta na quadra e parou em nossa direção.Quando eu fui correr, me juntaram pelo pescoço e me jogaram no porta malas. Deram uns socos no meu parceiro, o agarraram e o puseram sentado no banco de trás, com mais dois malucos. Seguimos calados.Me perguntava: “Quem eram? O que queriam?”. Nunca tinha visto aqueles homens na minha vida. Estacionaram o carro em frente a um cemitério, arrancaram nossas roupas e, enquanto nos surravam,perguntavam: “Quem tinha roubado a loja?”. Que loja? Nós lá sabíamos de roubo de loja?Os caras insistiam, queriam que apontássemos os culpados.Quase mataram meu namorado. Ele se esvaia em sangue, de tanta coronhada de revolver. Eles disparavam tiros para o alto. Falei todos os nomes que eu conhecia no mundo, mas nada. Eles continuavam a me bater. Não tínhamos roubado, nem sabíamos quem tinha feito. É assim,os moleques das ruas fazem a mão e quem paga o pato são os crackeiros.O preconceito é muito grande. Só porque é drogado, tem que carregar a fama de ladrão? Nem todos roubam e nem todos matam, mas o rotulo é para todos.Eu mal conseguia me mexer, sentia meu corpo todo inchado.Então, depois de ter nos deixado completamente machucados, eles desistiram e foram embora. Nos agarramos e fomos andando, até que conseguimos ajuda de um homem, que passava pela rua. Ele nos levou para o hospital.Não falamos a verdade na emergência, nem para o homem que nos socorreu. Para que falar a verdade? Você pensa que, se o homem soubesse que éramos usuários, teria nos ajudado? Era capaz de ele passar com o carro por cima de nós.Imagina, drogados... Falamos que tínhamos sido assaltados. Até na rádio foi divulgado assim. A verdade ficou guardada. Mais uma injustiça no mundo, só mais um fato. Quando se fala que é usuário, se perde a razão: ninguém escuta, ninguém acredita. Pegou no cachimbo do crack: perdeu a razão diante da sociedade. Ficamos três dias internados, tomando soro e nos reabilitando, para poder voltar para nossas vidas, para o nosso mundo.No mundo das pedras, somos rotulados. Não temos mais valor para as pessoas, nada que se fale será a verdade. Sempre vão nos questionar.
Este texto faz parte do livro Meninos do Crack, da jornalista Ana Paula Nonnemacher.
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